Créditos: André Wanderley/Divulgação
Cheguei ao teatro bem cedo - 18h40 - e fiquei passeando pelo Centro Cultural Banco do Brasil, um lugar ao qual já fui centenas de vezes, e decerto irei mais algumas centenas, posto que adoro lá. Pontualmente às 20h, já estávamos todos sentados no Teatro I do CCBB, e aqui vai uma crítica contundente à nova política de ingressos adotada pela casa. Há algum tempo a venda de ingressos para os espetáculos do CCBB passaram para as mãos da empresa UP! Ingressos, e mudanças na estrutura de vendas e de ocupação do auditório não agradaram a muitas pessoas. Agora, para comprar um ingresso pela internet, tão logo o espetáculo é anunciado, você precisa entrar no site da empresa - que funciona muito mal e cujo sinal vive caindo, impossibilitando a conclusão da compra. Além disso, você precisa retirar os ingressos na bilheteria antes do espetáculo - ou seja, vale mais a pena comprar diretamente na bilheteria do que se estressar com o site da UP! Ingressos. Além disso, a ocupação de assentos no teatro agora tem a "fila de desistência" - várias pessoas que não compraram ingressos, mas pretendem assistir ao espetáculo caso algumas pessoas desistam de ir ao teatro ou queiram revender seus ingressos na porta. O problema disso é um constante atraso em todas as apresentações, além de atrapalhar a dinâmica do teatro - solo sagrado das artes cênicas, que já não mantém mais a tradição de fechar suas portas e vedar a entrada de pessoas após o início da peça teatral. Como alguém que já esteve em cima do palco, sei o quão incômodo é perceber pessoas se levantando e procurando lugar na plateia durante o espetáculo.
Créditos: André Wanderley/Divulgação
Bem, voltando à peça: "Hora Amarela" é uma tradução do texto "Through The Yellow Hour", de Adam Rapp, famoso dramaturgo norte-americano, feita por Isabel Wilker (que também é uma das estrelas da produção, interpretando Maude, uma mãe que está vendendo sua filha em troca de abrigo e de morfina), com direção de Monique Gardenberg (diretora dos filmes "Ó Paí Ó", de 2007, e "Benjamin", de 2003). A história é a seguinte: Ellen mora sozinha em um bunker, em um mundo devastado por uma doença espalhada pelo governo e pela guerra que já perdeu seu sentido, e continua sem ter um porquê específico. O marido de Ellen está desaparecido há mais de cinquenta dias, desde que saiu para procurar comida. Logo no início do enredo, um refugiado sírio entra no bunker de Ellen, que não mede esforços para matar o homem, cuja língua ela não compreende.
Cena de "Through The Yellow Hour", texto que originou "Hora Amarela". Créditos: The New York Times/ Divulgação
Pouco depois, Maude, uma garota viciada em drogas e abandonada grávida de gêmeos pelo marido em meio à guerra, pede abrigo - Ellen a deixa entrar, pois ela carrega o bebê que será sua esperança de uma vida melhor. Ao longo da peça, entendemos que Ellen venderá o bebê para ela ser criada em uma reserva, compreendida como um campo sem guerras onde os poderosos estão criando uma raça ariana. Maude não criou vínculos com a criança, e fará de tudo para conseguir livrar-se logo dela e roubar todas as drogas que Ellen, enfermeira de profissão, guarda consigo naquele porão - morfina, codeína, propofol, entre outras - nem que, para isso, ela tenha que seduzir Ellen com seu belo corpo e seus argumentos. É possível perceber, desde a primeira cena, que Ellen está completamente transtornada pelo fato de estar presa há mais de três meses naquele lugar - ela já não fala coisa com coisa, berra sem motivo, está paranoica e viciada nas drogas que estoca. Deborah Evelyn faz um sensacional trabalho, mas soa um tanto histriônica em alguns momentos. Isabel Wilker está brilhante como Maude, e não tem pudores ao ficar completamente nua em cena - aliás, quase todos os atores ficam nus em alguma cena da peça, que é o momento onde expõem a fragilidade de seus personagens.
Créditos: André Wanderley/ Divulgação
Conforme passa a história, ouvimos diversas vezes bombardeios e ataques terroristas acontecendo fora da boca de cena - a sonoplastia, realizada por Lourenço Rebetez e Zé Godoy, é primorosa e bem colocada - e novos personagens serão introduzidos: os doutores responsáveis por levar a bebê embora que, em troca, deixam Ellen morando com Douglas (Darlan Cunha), rapaz negro de quatorze anos que vivia, até então, na reserva. O rapaz é cheio de não-me-toques, e demora para se sentir à vontade ali, mas Ellen faz o que pode, e termina a peça tomando um banho de banheira com ele, enquanto conversam sobre a vida e sobre a guerra. Ao final do espetáculo, todos os atores vêm ao palco para agradecer ao público e ao projeto VIVO EnCena (que também trouxe o show de Marisa Orth e da Banda Romance para a capital federal).
Créditos: André Wanderley/ Divulgação
Não posso deixar de comentar todo o meu respeito e admiração pelo maravilhoso cenário de "Hora Amarela", cuja concepção é da sensacional Daniela Thomas (diretora e roteirista dos filmes "Terra Estrangeira", de 1996, e "Linha de Passe", de 2007) e de Camila Schmidt. O palco é, basicamente, o bunker onde Ellen mora, e conta com uma escada, uma escrivaninha, um armário, um berço para a bebê de Maude, e um banheiro anexo, que fica atrás de uma cortina de plástico transparente, e conta com uma privada e uma banheira. A cenografia é deslumbrante, e leva o espectador para dentro daquela realidade obscura e assustadora, porém cada dia mais próxima de nós - apesar de pós-apocalíptica, a história fala do conflito entre muçulmanos e ocidentais, que parece cada vez forte e beira, por vezes, uma explosão a nível internacional. Devo confessar que acreditar que, no caso de haver uma Terceira Guerra Mundial, sua eclosão será no Oriente Médio, a partir dos muitos conflitos ali por religião e pela posse de recursos minerais.
Cena de "Through The Yellow Hour", texto que originou "Hora Amarela". Créditos: Divulgação
Após o espetáculo, consegui me encontrar com Isabel Wilker e Deborah Evelyn na saída da coxia, e pude bater um rápido papo sobre a apresentação e sobre o texto. Ambas foram bem simpáticas e solícitas, e também peguei um autógrafo delas. Saí do CCBB impactado porém realizado - "Hora Amarela" é, certamente, uma história pesada e contundente, que retrata uma realidade dura e violenta, porém termina com uma mensagem de esperança e descontentamento. A guerra está longe de acabar, mas sempre pode-se avistar um lampejo de esperança no breu da tristeza. Recomendo, sim, a peça a todos que se interessam pela temática de guerras e de pós-apocalipse, porém esclareço que não é um texto para pessoas de estômago fraco - as descrições de torturas e uso indiscriminado de drogas e de nudez podem ofender a "moral e os bons costumes" dos mais conservadores.
Deborah Evelyn e eu, na saída da coxia de "Hora Amarela". A qualidade da foto ficou bem ruim. Créditos: Arquivo pessoal
Isabel Wilker e eu, na saída da coxia de "Hora Amarela". Créditos: Arquivo pessoal
Nenhum comentário:
Postar um comentário